Uma mulher misteriosa, enigmática, imprevisível... assim é a Clarice que habita o imaginário do público. “Com o perdão da palavra, sou um mistério para mim”, disse ela que é uma das mais aclamadas escritoras brasileiras, em “A descoberta do mundo”.
Nascida Haia Lispector, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920, chegou ao Brasil ainda menina com sua família. Aqui, por iniciativa de seu pai, passou a se chamar Clarice.
Formou-se em Direito, mas iniciou sua carreira como jornalista. Na mesma época, teve seus contos publicados em jornais e revistas.
Tímida e ousada, como se autodefinia, publicou seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, em 1943. Escreveu contos, romances, novelas, crônicas e histórias infantis. Tornou-se nossa maior representante de uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva. Sempre lembrada por suas personagens de perfil psicológico complexo, imersas em situações corriqueiras.
Conheci Clarice com “Amor”, conto que figura no livro de Ítalo Moriconi, “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”. Inserido na obra “Laços de Família”, de 1960, “Amor” tem como protagonista Ana - mãe, esposa, dona de casa, dedica seus dias a cuidar da família e dos afazeres domésticos. Certo dia, após as compras, pegou o bonde. Da janela viu um cego que estava mascando chiclete. Ah... a epifania clariceana, aquele acontecimento banal que te faz repensar uma vida inteira!
“Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o...”
Aquela imagem, que passaria despercebida para muitos, provocou em Ana um efeito devastador, então confrontada com a dura realidade da vida. Aquela cena tirou nossa protagonista de seu estado de alienação. Desorientada por aquela visão, passa do ponto onde deveria saltar e chega ao Jardim Botânico. Lá, o cego e seu chiclete dão lugar a natureza selvagem no papel de agente perturbador dos pensamentos de Ana. Tentada e assustada, dividida entre o nojo e o fascínio por esse “mundo faiscante”, após divagar sobre a fragilidade e força da vida, volta a si, ou pelo menos ao que esperam dela, e lembra-se de sua família. Subitamente é tomada por um sentimento de culpa. Corre para casa, mas o quê viu é sua companhia por todo o trajeto. E mesmo já em casa, a “alma batia-lhe no peito”. O mundo “sujo, perecível” insistia em convida-lá a tomar parte dele. Mesmo o abraço de seu filho não consegue fazê-la esquecer o “chamado do cego” e todo o mundo que havia lá fora por explorar. “A vida é horrível”, mas também dinâmica, cheia de surpresas. O coração de Ana “se enchera com a pior vontade de viver”.
“Amor” fez com que eu me encantasse pela obra de Clarice!
Sobre ser escritora, Clarice Lispector disse em entrevista à TV Cultura, em 1977:
“Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo em escrever ou então com o outro, em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser um profissional para manter minha liberdade”.
Pouco antes de morrer, publicou “A Hora da Estrela”, livro que muitos - devo confessar estar entre esses - consideram sua obra prima. Conta as desventuras de Macabéa, moça ingênua e sonhadora, recém-chegada de Alagoas ao Rio de Janeiro. É a “estória de uma moça, tão pobre que só comia cachorro quente. Mas a estória não é isso, é sobre uma inocência pisada, de uma miséria anônima”, contou a autora na já referida entrevista.
“A Hora da Estrela” foi adaptada para o cinema, com o mesmo título, por Suzana Amaral, em 1985, e rendeu a intérprete de Macabéa, Marcélia Cartaxo, o Urso de Prata, no Festival de Berlim.
Atualmente, circulam na internet inúmeras frases e textos, de autoria não comprovada, atribuídos a Clarice Lispector. Uma “obra fantasma” profundamente reflexiva, apaixonada e com tons de auto-ajuda. Partindo da frase de Clarice “a vida é um soco no estômago”, a psicanalista Maria Homem diz que a autora é “a antiautoajuda que ajuda”, ou seja, é o auxílio de fato eficaz, aquele que de alguma maneira não tem o discurso de “massageamento egóico” do tipo “você pode, você consegue”. Segundo ela, “Clarice vai navegar nas águas obscuras, nas águas ambíguas. Não só das coisas, como da própria escrita, da própria enunciação, da forma de dizer. Ela vai dizer de uma maneira que ela própria é escorregadia”.
Sendo os textos que circulam pela rede de Clarice Lispector ou não, fato é que, como disse Otto Lara Rezende, jornalista e escritor, “ela nunca se livraria de si mesma. Quem tem contato com sua obra também não.”
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